domingo, 30 de setembro de 2012

Carta de Romeu, o Autocrata - Parte II

Olá.
Eis a conclusão de minha carta à devotchka anônima que comecei em â-postagem anterior... na verdade, ela funcionará como uma segunda carta que completa a primeira; Espero que vos seja ainda produtivo, lindões.

"Olá Drugui. Sem muito me problongar, escrevo aqui a conclusão do que comecei com a primeira carta que escrevi-te.
Respondo à acusação por ti feita de que minha ação questionadora é autocrática, ainda que ela tenha vindo, ao meu videar, sem a devida argumentação e com uma imensa thelema por calar-me. Digo que: a) Minha ação diante dos indivíduos difere de todas as outras comunicações pelo conteúdo, não pelo método e b) Ela é, por isso (a), análoga a qualquer diálogo, sendo sua censura uma opressão à minha expressão. Sustento que autocrático é calar-me e não expressar-me. O medo da reação da tua própria reação ao que eu digo é a expressão de tua inconsciência do que há dentro de ti.

Não quero estender-me. Apenas espero que leias isto e que me compreendas, porque entendimento também é amor e eu plusdesejo o teu idîn.

Abraço imenso e intenso
          e beijão,


Romeu."

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Carta de Romeu, o Autocrata - Parte I

Oi oi, druguis todos. O que escrevo seguir consiste em uma carta dirigida a uma devotchka específica (que tratarei por Drugui, pois não quero revelar seu ímia real), mas que quero dividir com todos vós, messeiando que vos será produtivo.

"Olá, Drugui linda. Espero que isto aqui não te chateie, apesar de teres dito-me que o iria... meu thelema aqui luvêr, como sempre, aproximar-te de Ma'at, Ribeldá e Idîn - daquele que julgo ser o caminho mais curto a ibóg... o teu ibóg, preciosa amada.
Questionaste, em nossa última conversa, a legitimidade de minha ação ao tentar "mudar outros indivíduos" (ação supostamente arbitrária, impositora) e é ela que eu quero demonstrar, argumentar e legitimar, queridíssima Drugui.
Primeiramente, gostaria que estendêssemos o questionamento que fizestes a todas ações semelhantes à minha, ou seja, todas as expressões que buscam uma mudança nos indivíduos. Assim, messeio que chegaremos a uma conclusão geral sobre esse tipo de ação e eu, convenientemente, admito, terei minhas analogias mais perto da discussão, a partir de agora.
Esclareçamos que as mudanças desejadas pelas ações em discussão são todas as mudanças realizadas por um ser em um indivíduo, através de qualquer forma de expressão. Qualquer mudança gerada de tal forma está dentro de nosso desenvolvimento atual. Se admitirmos que qualquer absorção de informação ou questionamento interage com o intelecto de um ou mais indivíduos, então aqui questionamos a ação dos meios de comunicação massificados (tua dodîn teletela, o rádio, a internet - e, especificamente, ESTE BLOG), dos livros, dos panfletos, dos cartazes, etc., etc. Questionamos a comunicação.
Afirmar que a expressão questionadora tem sobre os indivíduos efeito autoritário não constitui verdade alguma. Qualquer pessoa incomodada com um questionamento tem sempre o direito a afastar-se, parar de ouvir, parar de "ser mudado". Além disso, supor que a mudança que realiza-se através de questionamentos é autoritária é afirmar que calar é mais democrático. Isso me soa bastante risível, inclusive. Prossigamos mesmo assim, visto que o que meu argumento é plena e racionalmente demonstrável.
Se um questionamento causa irritação a um indivíduo e incomoda-o, é porque trata-se ou de um questionamento jamais feito (e que, assim, inaugura novo caminho à razão - algo que quero admitir como positivo aos seres humanos em geral), ou de um questionamento cuja resposta incomoda o indivíduo (que nesse caso teme a própria concepção da verdade, algo que é extremamente positivo superar, convenhamos). Calar o questionamento é calar a essência da própria ciência que, a princípio, apenas torna claras ao indivíduo suas próprias concepções e incertezas. Ora, não há problema algum em ter claras as próprias concepções e muito menos em sanar as incertezas, a menos que se prefira ser cego a videar claramente o mundo-imundo - escolha aceitável e que, nesse caso, deve ser feita com surdez e cegueira do receptor frustrado e não com mudez de um locutor qualquer.
Os indivíduos têm em si concepções que perceberam e receberam de outros seres. Se é possível agir sobre o seu intelecto é porque alguém ou algo já teve o direito de fazê-lo, quando sua consciência surgiu das primeiras percepções do id ou quando o superego foi-se formando. Ora, foi a escolha "natural" de seu id perceber e dar origem às coisas "sabidas" (e portanto conscientes e pré-conscientes). Foi a ação dos objetos e seres ao seu redor que os fez entender o mundo da forma entendem, a menos que concebamos que tal coisa veio do limbo, da alma, d'O Carneiro e afins.

Concluo em minha próxima postagem, devotchka de meu S2

Vôndoifinot Ba'roç,
Romeu."

domingo, 16 de setembro de 2012

O Partido

Olá, meus druguis - e este olá é quase que incomumente importante, após tanto tempo sem que eu escreva ter passado... Muitíssimo mais do que o habitual: desde o dia 24 de agosto, lindos companheiros, não escrevo nada neste nosso pedaço do cybermundo-imundo. Volto a escrever, após todo esse tempo, para fazer algumas colocações sobre o Partido (aquilo a que todo o pessoal starre denomina Estado).

Estando, em sua maioria, acostumados a videá-lo como imutável, sólido, essencial e benéfico à sociedade, os indivíduos,  em geral, esquecem de perceber algumas coisas sobre o "Estado" (e sobre o "não-Estado" - heh). Quero mostrar as que videio mais importantes.
1) O Estado precisa existir para os seres que não conseguem amar. Um videar utópico?
Suas regras e instituições servem para livrar-nos da injustiça, garantir o bem do povo que o construiu, mas todo o indivíduo que deseja justiça  e bem para si deseja também, através do amor completo, a justiça e bem para o outro... o que quero dizer luvêr que, se vos amo, meus druguis, sou justo convosco e ajo por vosso bem por idîn, não por lei. Se preciso da lei para desejar o vosso bem, é porque o amor não foi suficiente para garantir tal coisa. Se preciso do Estado para unir-me a vós, é por que o ódio garantiu que uma barreira se formasse entre nós e, para manter-nos juntos e evitar minha fraqueza, minha solidão, preciso que uma instituição de poder faça-nos unir.
2) O Estado, portanto, não precisa existir para os seres que conseguem amar. Se todos os seres humanos conseguissem amar uns aos outros intensa e ilimitadamente, compreendendo suas necessidades, seus problemas e sua thelema, e desejando o seu ibóg (a realização do projeto que construíram para si mesmos), não haveria violência que não a orientada à neurose, não haveria injustiça que não aquela que todos desejam findar na raiz, não haveria desigualdade que não a diferença.
3) O Amor é o caminho para o bom funcionamento de uma Anarquia. A extinção do poder que obriga os indivíduos a agir de forma viável à convivência em conjunto só é substituível pelo entendimento do benefício da união, presente no amor, que os faz QUERER agir de tal forma, mas não os obriga.

É claro que isso tudo que coloquei é extremamente básico, ignorando muitas especificidades e complexidades, mas, crendo que isso introduz, de forma satisfatória, o que penso sobre a premissa principal para a necessidade do Estado, o desamor, e sobre sua desestruturação através do amor, deixo-vos por aqui.
Espero que todos aqueles que tiverem opiniões divergentes possam expressá-las para que aqui gavoretemos e busquemos a aproximação da razão.
Um vôndoifinot Baaroç. Amo-vos dupliplusmuitão.
Romeu.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Voto ou Ação Direta?


Vocês estão sendo enganados, bons eleitores, vocês estão sendo ludibriados, eles os bajulam quando dizem que vocês são a justiça, o direito, a soberania nacional, o povo-rei, homens livres. Colhem seus votos e é tudo. Vocês não são mais do que frutas… bananas.
Zo d’Axa. “Aos eleitores”. 3 de maio de 1898.


Mais um ano eleitoral chegou. E, mais uma vez, lá estão os políticos. Nas ruas, nos jornais, nos onipresentes “santinhos” ou na tela da televisão: prometem transformações, vomitam slogans ridículos, dizem que “agora vai ser diferente”. No entanto, passam as eleições e as coisas não mudam profundamente.
Escândalos de corrupção, elevados níveis de violência, precário sistema público de saúde, falência da educação, repressão aos anseios camponeses por reforma agrária, criminalização de movimentos sociais populares. Mazelas e misérias historicamente construídas pelo modo capitalista de viver e de organizar a sociedade.
Se há mudanças mínimas, liberdades duramente conquistadas e relativos alargamentos na “área da cela” na qual sobrevivemos (como diria o anarquista Noam Chomsky) elas foram fruto da pressão de movimentos organizados, do clamor das ruas. Movimentos que não se contentaram em ser guiados pela pauta das casas legislativas.
Ainda que, a partir do século XVIII, a burguesia tenha se voltado contra o absolutismo do Antigo Regime – em nome de “liberdade, igualdade e fraternidade” – a noção de soberania popular foi se relativizando (e se enfraquecendo) na medida em que o poder burguês foi consolidado. Uma vez no comando, a burguesia não hesitou em limitar a participação popular a um mínimo, utilizando-se de ferramentas tanto de repressão quanto de convencimento. E, com muito custo, foi absorvendo em seu favor alguns dos anseios das massas – sufrágio universal, participação da mulher, voto secreto, etc.
Atualmente, os elementos persuasivos são largamente utilizados por um eficiente aparato de propaganda. O slogan governamental decreta: “O destino do eleitor está em suas próprias mãos”. Assim, o discurso oficial identifica o ato de votar (ou apertar botões, em sua versão mais moderna) como o momento máximo de “cidadania”. Não se discutem evidentemente, os limites desse modelo ou as formas de aumentar a participação de todos em seus destinos, de modo efetivo. A eleição acaba sempre sendo um bom negócio paras as elites. Uma das maiores armas das oligarquias é justamente a desmobilização – que se amplifica ciclicamente no ritual das urnas. A direita só clama por mobilização popular quando se organiza com vistas ao retorno da “ordem” ou ao fascismo. Mas o fascismo torna-se necessário apenas quando as ameaças parecem transbordar as urnas, e as ameaças às estruturas do sistema só ocorrem com muita mobilização e organização popular.
A pseudodemocracia vigente adormece a possibilidade de esclarecimento, de conscientização, de organização e de ação política em seu sentido mais incisivo: o de atuar na pólis, na cidade, no bairro, no cotidiano, a partir de organismos autônomos, horizontais, assembleias, associações de bairro, conselhos de operários – ou quaisquer outras definições do que, na essência, significa democracia direta.
Os anarquistas sempre estiveram atentos frente às estratégias mistificadoras da democracia burguesa. Buscando fugir da ação política institucionalizada – como diria Jaime Cubero, essa grande “arma burguesa de retardamento” da democracia direta – a proposta anarquista caminha no sentido de estimular a autonomia, o protagonismo dos cidadãos, a política feita de forma direta; distinguem-se assim de outros setores da esquerda que apostam em vias eleitorais.
A participação nas eleições pelos partidos políticos de esquerda nos mostra a problemática de usar meios inadequados para alcançar certos fins. Há os que querem usar as eleições “apenas como propaganda”, como se fosse possível competir com o aparelho burguês por seus próprios mecanismos, sem caricaturar ou ridicularizar as propostas socialistas em rede nacional!
Outros dão ênfase apenas à questão tática da eleição, argumentando que seria perfeitamente possível aliar a luta parlamentar às estratégias de massas  – a dos movimentos sociais. No entanto, percebe-se que essa ação “inofensivamente” tática vai se tornando paulatinamente “estratégica”, fazendo que estes grupos progressivamente deformem o projeto original  que defendiam. Estes vão ajustando lentamente seus projetos aos meandros da democracia burguesa, dos gabinetes, das condições legais, muito eficazes em anular projetos radicais.
Não se trata de uma questão substancialmente “moral” ou de “traição” – ainda que a imoralidade e a mentira possam também fazer parte de todo o processo. Estamos falando de um tipo de dinâmica que é própria da ação parlamentar: a ação institucional vai solapando a ação de massas. O que era um projeto “periférico” ganha cada vez mais contornos de “centro”. Nas novas periferias geradas no processo, ficarão os movimentos sociais que esses partidos hegemonizam ou influenciam (as suas “bases de apoio”).
Os parlamentares e mandatos “combativos” destes partidos de esquerda – já encastelados como centros, ou seja, poderosos aglutinadores de recursos financeiros e políticos – impõem assim o ritmo das lutas de fora para dentro dos movimentos. O resultado é o pior possível: movimentos que ficam subordinados aos limites da legalidade burguesa ou às figuras carismáticas – a forma mais irracional  de subordinação política. A elite sabe que, se um candidato “radical” se candidata para contestar estas estruturas, é possível aplicar a mais antiga das fórmulas democrático-burguesas: caso se candidate que JAMAIS se eleja; caso se eleja garanta que não governe; e caso governe… derrube-o!

Nestas eleições, portanto, tanto faz votar nulo, no “menos pior” ou não ir votar. O voto útil “contra a direita”  e a política cínica (ou ingênua) do “melhorismo” ignoram que os exploradores já têm seus postos garantidos na estrutura de poder independente do resultado das eleições: estão representados no BNDES, nos projetos das empreiteiras, nos monopólios de comunicação, nas estruturas verticais de trabalho e de organização e no extermínio da juventude pobre e negra pela polícia.
Um governo “mais à direita” pode reprimir mais os movimentos sociais é verdade. Um “mais à esquerda”, pode ao invés de reprimi-los, comprar ou cooptar os movimentos. Contudo, os prejuízos de ambas as políticas são igualmente terríveis, se a primeira ataca mais os direitos dos trabalhadores, a segunda os desarma completamente para defendê-los. Os governos evidentemente mudam, e enquanto houver capitalismo, todos sabem que isso não é nenhuma novidade.
Deveríamos nos perguntar, não as condições que desejamos para construir nossas lutas, mas sim, como podemos impor nossas pautas – a dos movimentos sociais –, aos carniceiros, sejam eles de direita ou de esquerda? Que tática e princípios nos servimos para enfrentar a repressão ou a cooptação?
Decerto não os removeremos destes postos sem um intenso e árduo trabalho de organização popular que possua fins revolucionários. Para isso, é necessário criar, fomentar e desenvolver a autonomia da classe em seus próprios organismos; fortalecermos um movimento de movimentos; criarmos um povo forte. Um povo que não dependa de líderes, messias ou candidatos a super-heróis.
É somente pela base que construímos experiências concretas de organização popular e assentamos as experiências de poder popular. Com a massificação dos organismos populares e a generalização da democracia direta, poderemos um dia ameaçar a ordem vigente e construir, nos mecanismos que levam à sua ruptura, uma nova experiência político-social. Assim fizeram os comunnards da Comuna de Paris em 1871; os trabalhadores espanhóis em 1936; os operários e camponeses russos em 1905 e 1917. Assim fazem os zapatistas, e assim fez o povo de Oaxaca em 2006, que, com suas assembleias populares, expulsou o governo e a polícia da cidade e se autogeriu politicamente, dando vida à Comuna de Oaxaca.
Aqui vamos tentando, experimentando e caminhando; mas tendo a certeza de que os caminhos da emancipação popular definitivamente não passam pelas urnas. Se passassem – parafraseando um velho ditado libertário – as eleições seriam obviamente proibidas.

Outra Campanha: Nossas urgências não cabem nas urnas!
A Outra Campanha – inspirada no exemplo de ação autônoma dos zapatistas mexicanos – busca construir uma nova forma de fazer política, com base no protagonismo e na luta popular. E, em vez de pedir o voto, incita a organização autônoma, a formação de coletivos, a vontade de interferir no próprio destino. E, no lugar de “santinhos” e slogans, quer: “autogestão, cooperativismo, ajuda mútua, ação direta, ocupações, mobilizações, socialismo libertário, gestão não-hierárquica, democracia direta, organização em grupos locais e coletivos em federações, e reforma agrária coordenada pelos próprios camponeses”. No Brasil, a Outra Campanha está sendo organizada por vários grupos e conta com adesões nos estados do Alagoas, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, etc. Saiba mais sobre a Outra Campanha no site:
http://outracampanhabrasil.blogspot.com
Por FARJ Federação Anarquista do Rio de Janeiro – Organização Integrante da Coordenação Anarquista Brasileira


domingo, 9 de setembro de 2012

Contra o Sectarismo



O espírito anárquico é essencialmente avesso a quaisquer fanatismos. Sendo ânsia de liberdade, não pode querer dogmas, nem disciplinas, nem mandamentos humanos ou divinos e, muito menos, inquisições, santos-ofícios, índices e autos-de-fé. Pregando o trabalho livre, o pensamento livre, o amor livre, a ação livre, não aceita nenhuma limitação às faculdades intelectuais ou emotivas, nem reconhece bitolas, cremalheiras, pauta, à exteriorização de idéias ou sentimentos. Só o indivíduo tem o direito de dirigir seu raciocínio, regular sua linguagem, enfrentar seu estilo, moderar seu juízo, orientar sua ação. O anarquismo combate a todo transe o despotismo de qualquer feição, o feitorismo de toda casta, tudo quanto lembre mandonismo, chefia, canga, subserviência, dominação física, mental ou moral. Assim, repele o regime carcerário do capitalismo, condena as fábricas de doutores, padres, militares, homens vazados num molde único, manequins talhados num só modelo, manipanços cujo enchimento é a mesma palha seca. Só o indivíduo conhece os seus caminhos. Impor, ao que pende para o norte, a marcha para leste, é roubar-lhe o destino, a vida, a personalidade. Esses princípios, nós, anarquistas, aplicamo-los rigorosamente na luta pela emancipação dos homens. E, dizendo "dos homens", firo um ponto essencial do anarquismo. O anarquismo não visa apenas a emancipar os trabalhadores, pretende emancipar os homens. Seu problema é muito mais vasto que o dos políticos ou socialistas de qualquer feição.
Acima da mera emancipação econômica, está certamente a emancipação moral e mental. Além do trabalho livre, está o pensamento livre e a ação livre. Libertar os homens do patrão é muito, mas não é tudo. Cumpre arrancá-los à tutela dos guias, políticos ou religiosos; e à tirania das "morais", criações de opressores para fanatizar escravos. Destarte, não compreendemos um revolucionário cuja ação promana de uma servidão. Como instituir um regime livre se não nos desvencilhamos das algemas tradicionais? Como pretender uma vida livre, se vivemos impondo regras e ouvindo ordens? Como desejar o homem "pôr si", habituando-nos, a nós e aos outros, a disciplinas vexatórias, censuras obsoletas e punições degradantes? Mal compenetrados dessa concepção de liberdade, vários anarquistas lamentam as divergências de atuação entre anarquistas. Pior ainda, lêem-se freqüentemente acusações de anarquistas-individualistas a anarquistas-comunistas, de anarco-sindicalistas e extra-sindicalistas, etc., etc. Todos esses ataques e lamentações revelam a tendência sectarista milenarmente entranhada nos homens. Pôr mais que estudemos, aprendamos, eduquemos o espírito, a pressão tradicional é tão forte, o meio ambiente, todo dogmático, registra, engaiolante, é tão rígido, que dificilmente conseguimos nos safar dessas determinantes poderosas. Pessoalmente, ao contrário, vejo nessas várias tendências anárquicas o melhor sinal de vida do anarquismo. Todos os homens não podem ver as coisas do mesmo modo, nem resolver os problemas pelo mesmo processo. A transformação social é um problema com soluções múltiplas. Nós, anarquistas, apresentamos a nossa. Porém, não a apresentamos do mesmo modo. A beleza da nossa concepção e a superioridade do nosso método estão positivamente nessa multiplicidade de meios, todos conducentes a um mesmo fim. Seja, pois, cada tendência livre na execução do seu modo de entender a solução final. Todas as águas afluentes irão dar na mesma foz. O verdadeiro anarquista, penso eu, aquele que se libertou totalmente do preconceito sectarista, colabora em todos os grupos, atua em qualquer tendência. Mais ainda, coopera com os não-anarquistas onde quer que a ação deles incremente a oposição revolucionária. Assim, é anticlerical com os anticlericais; é democrático na defesa dos princípios liberais contra os reacionários; está com os bolchevistas, sempre que estes reivindiquem direitos, reforça a ala antimilitarista, ainda que os antimilitaristas sejam burgueses; colabora com a escola moderna racionalista, conquanto não seja senão reformista; anima os teósofos na propaganda fraternista, os vegetarianos na extirpação dos vícios, o próprio Estado Liberal na sua luta contra o imperialismo vaticanista. Não proceder assim, seria confinar-se ao sectarismo e negar, nos atos, a doutrina anarquista, essencialmente anti-sectária.
Por José Oiticica Ação Direta. Rio, 10.01.1929